domingo, 7 de abril de 2013

HQ DIGITAL MOINHO





Existe uma máxima do Art Spiegelman, o criador de “Maus”, que determina que “quadrinhos são tempo em forma de espaço”. Para um quadrinhista, isso devia ser uma frase tão importante quanto o “penso, logo existo” seria para um filósofo. É algo muito simples, e ao mesmo tempo, define tudo o que é a arte sequencial. Tudo o que pode ser considerado bom no “Moinho” parte dessa máxima. Nosso trabalho, do Pedro e meu, consistiu em tentar, completamente no escuro, quebrar um conceito máximo das histórias em quadrinhos, de que, por definição, elas teriam que conter quadros, e ações estáticas. Na nossa utopia, encontramos no cinema uma possível solução, e pensamos em criar uma HQ em plano sequência, em que os “cortes” dos quadros não fossem visíveis. Se conseguimos ou não, cabe ao leitor definir. Agora, passados quase dois anos desde que terminamos o projeto, diria que conseguimos isso parcialmente. Nossa possível subversão da linguagem acabou ressaltando o princípio mais básico das HQs. “Quadrinhos são tempo em forma de espaço”. Antes de falar minhas impressões, preciso contar a história do projeto.

Em 2009, comecei a discutir com Pedro sobre uma série que estava querendo criar. Pensava em uma série de tiras em canvas infinito, no qual tentaríamos criar uma história em que os personagens vivessem em um universo onde, depois da explosão de um reator nuclear, o tempo contínuo tivesse deixado de existir. Não havendo tempo contínuo, os minutos poderiam se misturar, os segundos poderiam ser eternos, as horas poderiam passar correndo, as pessoas podiam se dividir em muitas, e o espaço iria perdendo o sentido. Nossa utopia era criar um quadrinho sem limites, um canvas infinito que continuasse em páginas no tamanho de uma parede, com uma sucessão de quadros completamente livre. Começamos a estudar física, tentar aplicar conceitos a isso. Foram sete meses trabalhando nesse projeto, algo muito mais ambicioso do que podíamos tentar na época, e que terminou como uma coleção gigantesca de esquemas, histórias cíclicas que se intercalavam sem ordem em uma espécie de galáxia. No sétimo mês, decidimos recomeçar do zero. Criamos então uma cena em que o protagonista passaria fugindo no meio de uma multidão. Eu imaginei essa cena como um mural, no qual o protagonista estaria em diferentes momentos, em diferentes poses, demonstrando seu progresso. Não seria mais um canvas cíclico, mas horizontal. O Pedro parou pra pensar na história, e quando terminou a reunião, voltou para casa e, unindo vários papéis com durex, me trouxe uma faixa enorme na semana seguinte, que logo compreendi. Minha ideia era criar uma cena simples, somente utilizando um plano lateral, quase um travelling. O Pedro decidiu subverter isso, buscando diferentes ângulos, que, mesmo assim, não operavam com enquadramentos típicos dos quadrinhos. O ambiente se distorcia para dar continuidade à ação, emoldurando a cena com nada além de suas partes.





Isso talvez seja complicado de imaginar sem um apoio visual; peço então que leiam o quadrinho, e daí pensem nessas questões. Eu adorei a ideia, e eu e o Pedro começamos a bolar uma história mais elaborada para trabalhar com isso. O primeiro protótipo contava a história de um homem indo ao médico. Achamos melhor buscar outro caminho. Eu e o Pedro sempre fomos fãs de cinema noir e suspense. Pensando em Hitchcock e Edgar Alan Poe, não querendo comparar ninguém com eles, mas tomando como referência, vemos que o suspense é uma ótima maneira de tentar trabalhar uma linguagem diferente. Assim, tomando como fortes influências os filmes “O Corpo que Cai” e “Chinatown”, criamos a história do detetive que vai inspecionar o quarto, posteriormente, banheiro, de um casal, para estudar um caso de assassinato, cujo motivo pode ser ainda mais obscuro. A história se formou com facilidade, porém, de modo diferente do que pensávamos. Definimos que haveria dois tempos, o do detetive, e o da assassina, que matou o marido enquanto ele tomava banho. É importante que eu diga que o trabalho, originalmente, seria impresso, em uma grande faixa sanfonada de 1 metro e vinte por vinte centímetros. Vendo que tínhamos dois lados para lidar, decidimos que, na segunda parte, a assassina voltaria à cena do crime, e os dois tempos se uniriam. É importante também citar a influência de Tarantino, pelo modo de contar a história, e Gaspar Noe; sem irreversível, nunca teríamos chegado ao modo como as páginas se seguem, com o efeito do plano sequência. Igualmente importante foi o clipe do "The Chemical Brothers", "Let Forever Be", quando precisamos criar momentos como o início do segundo lado.





É claro que quadrinhos também foram importantes como nossas referências, caras como Basil Wolverton, Art Spiegelman, Alan Moore, Robert Crumb, Will Eisner, Lorenço Muttareli. Porém as saídas da história vieram mesmo do cinema, e depois, da música. Além de buscar o título da história de uma música do Cartola, “O Mundo é um Moinho”, que usamos como epígrafe, achamos que o esquema de um crescente musical seria interessante para definirmos o ritmo da história. Pegamos o esquema de uma música pop: verso / refrão / solo / verso / refrão, e tentamos criar uma narrativa a partir disso. Daí veio a ideia de um disco, pois afinal, o quadrinho seria cíclico, o que não se perdeu na versão online. Porém, isso tudo era bem diferente no impresso, o efeito foi bem distinto, pois querendo ou não, as dobras funcionavam como quadros. Doeu um pouco nunca ver o projeto impresso (mais sobre isso depois), mas acho que online ele causou um efeito mais interessante em outros sentidos. Um link com a visualização da HQ impressa está aqui:http://www.youtube.com/watch?v=7uuTnOxKqk4



Você deve ter percebido que até agora eu quase nunca disse “eu fiz”, ou “ele fez”, a não ser em coisas muito específicas, e sim “nos fizemos”. Isso porque o “Moinho” foi o projeto mais horizontal em que já trabalhei. Tanto que, no nosso site, você não encontrará no quadrinho uma divisão de “roteirista” e “desenhista”. Isso foi bolado pelos nossos amigos que nos divulgaram, isso entrou porque ambos precisamos de portifólio. Mas a verdade é que eu tive total influência na arte, mesmo nunca pegando na caneta, e o Pedro teve total influência no roteiro, mesmo nunca colocando os dedos pra digitar. Foi um trabalho completamente colaborativo, que realmente tornou muito mais ambígua essa relação industrial e organizacional de roteirista e desenhista; eu acredito que os quadrinhos podem ser um dos meios mais democráticos de arte, por cobrar tão pouco em sua produção; basta pensarmos nisso juntos, e depois pensarmos em melhores formas de lançar e divulgar nosso trabalho. É importante falar que, no meu caso, "Moinho" foi minha primeira HQ, com exceção de algumas tiras criadas na época do ensino médio, que foram publicadas no "Tiras Nacionais", "Carlos Dawn, artista marginal", mas nunca foram pra frente. Quando começamos "Moinho" eu tinha quase vinte anos. O Pedro estava em seus 28, 29 anos. Tinha lançado algumas fanzines em Ribeirão Pires, e dado algumas aulas de HQ. A fanzine chamava "Grito Primal". E ele chegou a publicar tiras nos jornais "Opinião Pública", e "Mais Notícias". De certa forma éramos estreantes, pelo menos nesse tipo de linguagem.




Lançar e divulgar foi nosso problema. Logo terminamos o projeto, em cerca de quatro meses; nisso, a narração foi diminuída em 70%, e algumas ferramentas visuais foram colocadas no lugar, para aumentar a velocidade da narrativa. Uma dessas ferramentas, que adorávamos na época, era uma série de desenhos infantis que acompanhariam o trabalho, dando a visão da filha da assassina da história. No final decidimos cortar isso também, algo que nos deu muito trabalho, mas que ficou melhor fora, como extra no site.

Terminado o “Moinho”, fomos atrás de editora. Tomamos os “nãos” mais estranhos de nossas vidas. Não era “não, não gostamos do trabalho”, nem “não, não é nosso público”. Foi “não, é muito fino, não tem lombada”. Sim, meus amigos, o quadrinho era muito fino. Caras como o Cláudio da editora Zarabatana, e meses mais tarde, Lorenço Muttareli, foram completamente gentis conosco, elogiaram e criticaram construtivamente nosso trabalho. Mas não há como lançar um álbum de quadrinhos “independente” sem lombada. Não seria visível em ambientes como a Livraria Cultura, é importante que seja como um livro, que seja visível. É possível que, se fosse feito por caras com melhor nome no mercado, teria saído. Mas não era o caso, e não saiu, nem no Proac, que tentamos, mas não deu em nada. Paciência, fomos para o online. Não posso negar, porém, que isso desmotivou a continuidade do projeto. "Moinho" era pra ser o primeiro exemplar de uma série de quadrinhos nesse estilo, cada qual com uma "limitação" formal. A primeira história girava em torno de um cômodo apenas. A segunda, teria que ser completamente linear, e se passar em vários lugares. A terceira envolveria um tempo muito maior. A quarta mostraria, nessa linguagem, uma relação sexual entre um homem e uma mulher, com a "câmera" rodando pelo corpo, que se deformaria na mesma forma que os cômodos. Chegamos a bolar um roteiro para a segunda, que mandamos para o proac; desde então, a continuidade do projeto permanece na geladeira.

Acho que faz quase dois anos que lançamos o trabalho. A recepção foi completamente morna, mas não de todo. Como disse antes, quadrinhistas que nós admiramos gostaram do projeto, o que nos deixa muito orgulhosos. Isso ajudou o Pedro, que começou a lançar mais trabalhos como ilustrador, e conseguiu uma edição inteira da “Caros Amigos” para ilustrar. Depois do “Moinho” nos afastamos um pouco dos quadrinhos, o Pedro foi trabalhar mais com artes plásticas, realizando algumas exposições, e eu fui estudar fotografia. Logo pretendemos lançar uma exposição juntos, com uma visão meio satírica do misticismo. Começamos a trabalhar em uma revista sobre arte também, que envolva todas essas disciplinas.




Pessoalmente, eu sou meio frustrado com o meio dos quadrinhos. Acho que as pessoas são muito alienadas quanto a essa questão de mercado. Temos caras geniais por aí, sem dúvida, mas ao mesmo tempo temos muitas panelinhas, espaços sem nenhuma autocrítica. Ainda assim, pretendo voltar para os quadrinhos agora. O Pedro está escrevendo um álbum, que ele mesmo desenhará, e eu outro, que muito provavelmente será desenhado por ele. Só posso adiantar que é uma visão meio subjetiva de histórias de terror clássicas, com uma visão meio satírica dessas figuras, a construção de um corcunda de filme B. Pretendo mandar isso para o Proac ainda esse ano. Quanto ao “Moinho”, não tenho esperança de vê-lo impresso por hora, mas talvez isso não seja algo ruim. Com a ajuda de nosso webdesigner, Fábio F. Lima, cujo nome eu gostaria que citasse, pois foi importantíssimo para essa etapa do projeto, conseguimos traduzir o projeto para outra mídia sem perdas. E temos que agradecer por ele chegar às mãos do público do seu blog.

veja mais sobre o projeto em
http://antcomix.com/moinho/


youtube
http://www.youtube.com/watch?v=7uuTnOxKqk4

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